quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Divisões Perigosas...

(*) Edna Roland

O caso da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, ocorrido recentemente e que envolveu a empregada doméstica de cor parda Sirlei Dias de Carvalho Pinto, repete a mesma cena brasileira de tantos outros episódios: não se trata da ausência de limites, mas da existência da geografia da raça, cor, classe e gênero, traduzida em tacanhos estereótipos que expressam as hierarquias sociais vigentes.
Uma mulher parda, em um ponto de ônibus às 4h30 da manhã, só pode ser uma prostituta e, “portanto”, pode tornar-se um saco de pancadas de jovens quase brancos da emergente classe média da Barra da Tijuca. Convém lembrar que quatro desses jovens foram reconhecidos na delegacia pela empregada como os agressores que a espancaram e a roubaram.
O pai do quinto agressor — um estudante de Direito — bem treinado na ética brasileira, que aplica a lei de acordo com a raça e a classe do acusado e da vítima, declarou que “as crianças” (sic) que espancaram Sirlei não deveriam ser presas, pois estudam na faculdade e trabalham. Portanto, não são bandidos.
Bandidos, no Brasil, como sabemos, são sempre pardos ou pretos, são desempregados, não chegam à universidade (especialmente às públicas), moram em favelas onde podem ser mortos ao resistirem à polícia, tenham ou não praticado crimes, sejam crianças, adolescentes ou adultos.
Como, provavelmente, não leram o livro organizado pelos líderes do Manifesto contra as Cotas Raciais, os “pueris” tijucanos não ficaram sabendo que no país não existem divisões raciais: ignoraram que brasileiros de todos os tons de pele se misturam, e que não podemos aceitar a introdução de uma divisão legal que separe e divida o povo. Deve ser, por isso, que quebraram o braço e o rosto da mulher.
Os agressores de Sirlei ignoraram, assim, que “raça não existe”. Não agiram por causa de “raças oficiais”, supostamente criadas agora pelas políticas de ação afirmativa que estão colocando negros nas universidades brasileiras. Agiram a partir do velho racismo nacional, que pode ser muito confortável para pesquisadores que, durante décadas, se beneficiaram de recursos para estudar um fenômeno “tão peculiar” e que, agora, começa a ser enfrentado por políticas propostas por aqueles que foram o seu objeto de estudo.
Diferentemente do que supõem alguns, o comportamento dos jovens, que moram em condomínio de luxo, não resulta de uma falha na sua formação familiar. Pelo contrário, expressa a eficácia da introjeção do racismo, do sexismo e da formação dada pela família, pela escola, por universidades em que não se convive com pessoas negras em pé de igualdade.
Ao contrário do que propalam os seus detratores, as políticas de ação afirmativa nas universidades promovem a integração racial. Além de garantirem o acesso ao ensino superior a negros e estudantes egressos de escolas públicas, ao colocar lado a lado negros e brancos no ambiente universitário, elas têm o potencial de humanizar os jovens brancos das classes média e alta, habituados a pensar que negros e negras são cidadãos de segunda classe, destinados a serem objeto do seu prazer e do seu ódio.

(*) A autora é psicóloga, integrante do Grupo de Especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU) para o programa de ação da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo e responsável pela Coordenadoria da Mulher e da Igualdade Racial da Prefeitura de Guarulhos (SP).

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