O RACISMO LINGÜÍSTICO                                  DO BRASIL
                                Marcos Bagno - Setembro de 2008
Que o Brasil                                  é um país entranhadamente racista                                  é coisa sabida e consabida. As estatísticas                                  estão aí, como se fosse necessário                                  o positivismo dos dados para confirmar: embora                                  os não-brancos representem hoje metade                                  da população, somente 14% deles                                  têm curso superior; só 13,1% têm                                  assento no Congresso Nacional, ao mesmo tempo                                  em que constituem 70% da população                                  analfabeta. Se isso não é racismo,                                  sr. Ali Kamel, então me diga o que é.                                  Impregnado nas mais diversas esferas sociais,                                  poucas pessoas, no entanto, se dão conta                                  de que também existe um racismo profundo                                  na história lingüística do                                  Brasil.
                                Logo após a Independência, nossa                                  ínfima elite intelectual se divertiu com                                  o debate sobre o estabelecimento de uma norma-padrão                                  para o português brasileiro. De um lado,                                  os defensores da "língua brasileira"                                  sustentavam a autonomia do nosso português                                  com relação ao falado na Europa                                  e lutavam pelo reconhecimento das características                                  idiomáticas da nossa fala urbana como legítimas,                                  inclusive para o uso na literatura. Do outro,                                  os que recusavam essas características                                  e defendiam a observância rígida                                  das normas gramaticais do português lusitano.                                  Liberais ou conservadores, porém, todos                                  lutavam contra um mesmo fantasma: o português                                  brasileiro falado pela imensa maioria da população,                                  composta de negros e mestiços, e que trazia                                  (e traz) as marcas dos processos de contato lingüístico                                  entre o português e as diferentes línguas                                  africanas aqui chegadas junto com os escravos.                                  
Essa é a origem do abismo largo e fundo que separa, até hoje, a língua que os brasileiros falam (e escrevem) - inclusive os altamente letrados com vivência urbana - das prescrições irreais e irracionais de uma norma-padrão fixada, já na origem, como uma impossibilidade de realização plena por parte de qualquer brasileiro. Ao contrário de outras sociedades, democráticas de fato, em que os usos lingüísticos reais das camadas letradas urbanas servem de base para se fixar o padrão a ser descrito pelas gramáticas e dicionários, ensinado nas escolas etc., no Brasil vivemos uma esquizofrenia lingüística: falamos o português brasileiro, resultante de 500 anos de contato lingüístico com idiomas africanos e indígenas, a terceira língua mais falada do hemisfério ocidental, mas utilizamos, como normas de regulação dessa língua, um conjunto de prescrições absurdas, arcaicas, já obsoletas em meados do século XIX, que contradizem frontalmente o nosso saber lingüístico intuitivo.
O português brasileiro é uma língua para a qual confluíram e confluem matrizes lingüísticas européias, ameríndias e africanas. Se tantos brasileiros pronunciam "djia" e "tchia" o que se escreve dia e tia é porque mamaram essas pronúncias junto com o leite das suas babás negras, junto com tantas coisas maravilhosas que os africanos nos legaram e que nossas classes dominantes continuam a repudiar como se não fossem suas, embora essas coisas estejam inscritas no DNA de todos os brasileiros.
 

 
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